O amor nos tempos da terceira onda do feminismo - Parte II
“A sorte dos homens é que as mulheres só querem igualdade, e não vingança”

Não por acaso movimentos como o Boy Sober (abstinência de homens) e o 4B, da Coreia do Sul estão ganhando cada vez mais adeptas. Eles refletem um longo processo de reflexão coletiva feminina sobre os inúmeros desafios que relações heterossexuais podem trazer para a vida das mulheres, da exclusão econômica associada ao casamento e à maternidade ao risco de sofrer diferentes formas de violência, emocional, psicológica, patrimonial, etc.
Movimentos anteriores, como o #MeToo (#EuTambém), que tem sua raiz em 2006 com a iniciativa da norte-americana Tarana Bike, mas que ganhou impulso global em 2017 quando a atriz Alyssa Milano incentivou mulheres a relatarem no Twitter casos de assédio ou agressão sexual, usando a hashtag #MeToo, após denunciar o produtor de Hollywood Harvey Weinstein. Em apenas 24 horas, mais de meio milhão de mulheres compartilharam suas experiências, expondo uma série de abusos sexuais que estavam sendo naturalizados pela sociedade.
O filme She Said acompanha as jornalistas do The New York Times que investigaram os abusos sexuais cometidos por Harvey Weinstein, revelando o escândalo que abalou Hollywood. Weinstein foi posteriormente condenado e está preso.
E a recente campanha #IchooseTheBear mostrou-se como um símbolo da insegurança que as mulheres sentem em viver em sociedade com homens. A origem da expressão remonta a um vídeo viral de 2024, no qual mulheres eram questionadas sobre sua preferência: se deparar com um homem desconhecido ou um urso na floresta. A maioria optava pelo urso, já que podemos prever o que um animal selvagem é capaz de fazer, ao passo que homens são imprevisíveis. A iniciativa acabou inspirando ações concretas. A Community Financial Credit Union, nos Estados Unidos, lançou o movimento "Choose the Bear™", oferecendo suporte financeiro emergencial a sobreviventes de violência doméstica.
Diante de tantos exemplos negativos, muitas mulheres estão escolhendo preservar sua paz e gozar plenamente da própria vida sozinhas.
Mas nem tão sozinhas… Comunidades exclusivamente femininas, voltadas apenas para moradia, têm surgido no Quênia, na China e nos Estados Unidos, crescendo e se consolidando como uma tendência global ainda pouco explorada pelo mercado. No Brasil, há experiências semelhantes, que embora não sejam exclusivamente femininas, são administradas por mulheres, que definem a forma de viver e organizar esses espaços.
Esses projetos permitem que mulheres compartilhem a vida de maneira mais humana, sem a necessidade de se adequar a modelos violentos de convivência impostos pela presença e pelas decisões de homens, preservando a autonomia, a segurança e a solidariedade que queremos ter no mundo.

Para quem ainda não desistiu do mercado amoroso, existem aplicativos como o TEA, uma comunidade online exclusiva para mulheres que funciona como rede de apoio, onde a experiência de cada uma serve como alerta e aprendizado para todas. É uma forma de proteção coletiva: uma usuária posta a foto e o nome de um homem que está conhecendo, enquanto as outras compartilham green ou red flags sobre comportamentos abusivos ou perigosos que sabem deles, transformando experiências individuais em ferramentas de proteção mútua.
Torço para que o TEA chegue logo ao Brasil. Enquanto isso, aqui já temos o Plinq, que, com o slogan “Não acredite no que ele diz, dê um Plinq!”, permite consultar os antecedentes criminais de um homem. No Facebook, existem comunidades em diversos países chamadas “Are we dating the same guy?”, onde mulheres compartilham fotos de potenciais dates e perguntam se alguém sabe se ele tem namorada ou é casado. E as postagens fervem!
Ao mesmo tempo em que é positivo ver essas redes de apoio femininas rompendo com a velha ideia de rivalidade entre mulheres, um papel que tentaram nos fazer acreditar e reproduzir por tantos anos, essa prática também escancara o quanto a sociedade ainda falha em garantir segurança e respeito às mulheres, tornando essas soluções autônomas não apenas legítimas, mas indispensáveis para quem ainda quer apostar em um romance heterossexual.
Mas, diante de um cenário tão desanimador, por que então mulheres continuam a se relacionar?
Uma resposta curta e direta? Cultura e psiquê. A já famosa frase da pesquisadora Valeska Zanello: “Homens aprendem a amar muitas coisas e as mulheres aprendem a amar os homens”, do seu livro A Prateleira do Amor, explica muito.

No modelo sociocultural que molda como nos tornamos mulheres e homens, somos ensinados a performar, sentir e agir no mundo de acordo com nosso gênero. E, consequentemente, recebemos recompensas e reconhecimento conforme o quanto conseguimos nos encaixar e nos destacar dentro dessa categoria.
Para as mulheres: o casamento com filhos. Para os homens: a performance sexual e financeira (Valeska Zanello). O casamento funciona como um elemento de identidade para que a mulher se sinta reconhecida como mulher nessa sociedade. Há uma pressão social enorme para que uma mulher “não fique para titia”, expressão que se refere àquelas que "não foram escolhidas por um homem" para ser a procriadora de seus filhos. A chamada síndrome da escolhida, termo cunhado por Adriana Ventura, reforça o fato de que o amor romântico atua como um dos principais instrumentos culturais de desempoderamento das mulheres.
A cultura, juntamente com a mídia, que funciona como um dispositivo de reforço cultural, nos faz acreditar que os papéis de gênero que vivemos são naturais. Há até quem tente nos convencer de que são biológicos! Mas uma leitura atenta de A História do Patriarcado e Calibã e a Bruxa revela a verdadeira motivação por trás desses papéis: dinheiro e poder. Esses livros são uma viagem linda e transformadora de conscientização sem volta! Mas infelizmente, ainda há quem resista ao conhecimento.
Basicamente, a resposta é a seguinte: enquanto as mulheres continuarem a terceirizar sua autoestima ao olhar de um homem, continuarão precisando dessa validação. E continuarão a cair no golpe clássico: “você é diferente das outras mulheres, por isso escolhi você”. À primeira vista, soa como um elogio, mas na verdade é uma armadilha disfarçada, uma forma de te colocar num pedestal às custas de rebaixar outras mulheres. No fim, é só o seu ego que está te manipulando mesmo.
A questão é tão profunda e psicologicamente complexa que, acostumadas a serem objetificadas sexualmente, muitas mulheres acabam naturalizando essa objetificação no campo da sexualidade, aprendendo a desejar e erotizar o desejo masculino sobre elas, e não o desejo delas próprias sobre o outro. Não é incomum que confundam o desejo em si com o simples fato de serem desejadas (Valeska Zanello).

Não é por acaso que tantas mulheres, inclusive casadas, nunca tiveram um orgasmo na vida. Agora com a liberdade sexual conquista pelo gênero, muitas se sentem pressionadas e até culpadas por isso, porque não conseguem usurfruí-la. No início da descoberta sexual, as mulheres raramente são incentivadas a buscar seu próprio prazer; em vez disso, aprendem a satisfazer o prazer do homem. Para a nossa cultura, o prazer não faz parte do que é ser mulher, isso pertence aos homens.
Há mulheres que precisam passar por um longo processo de desconstrução só para não se sentirem culpadas ao buscar o próprio prazer sexual. A religião fez seu trabalho muito bem nesse sentido. Para essas, uma terapia com abordagem feminista pode ser transformadora. Para outras, em que os danos e perdas são mais superficiais, a revolução do orgasmo em segundos do Satisfyer II ajuda bastante.
O gol contra do patriarcado
A ironia que já ouvi muito por aí: pela cultura, muitos homens escolhem casar com mulheres que tiveram poucos parceiros, por considerá-las de “valor”. Depois, esses mesmos homens reclamam da parceira com pouca liberdade sexual na cama, criando justificativas que os convençam de que uma traição é aceitável. Mas não, também não é só por isso que traem, é apenas um exemplo da hipocrisia. Traem porque sabem que o patriarcado os permite trair e que serão perdoados sem muito julgamento social, porque “isso é coisa de homem”. Mas não, não é, é apenas uma passada de pano cultural.
Cansadas de servirem como almofada psíquica dos homens, as mulheres têm despertado cada vez mais para o fardo invisível que é cuidar deles, um fenômeno que deu origem ao termo mankeeping. Ele escancara o peso de se relacionar com alguém emocionalmente analfabeto, que pratica uma incapacidade seletiva para tudo o que não quer fazer com a justificativa: “é que eu sou ruim nisso”. Sabemos que não é por falta de talento, é por comodismo mesmo. Quem quer e quem não pode não querer, aprende.
Acho que, a esta altura, podemos concordar que não é por acaso que estamos assistindo a uma epidemia de solidão masculina. Homens que nunca aprenderam a lidar com as próprias emoções, que não compartilham seu mundo interior, que rejeitam a ideia de fazer terapia e que agora não encontram mais as esposas que antes faziam esse papel de suporte emocional e de cuidado… estão, pasmem, se sentindo sozinhos. Ora, ora, quem diria que o patriarcado daria um golpe em si mesmo?
Mas quando se fala sobre a solidão dos homens, raramente se menciona um outro dado, esse sim realmente perturbador: mulheres têm seis vezes mais chances de serem abandonadas pelo parceiro após o diagnóstico de uma doença grave. Um estudo realizado em 2009 pelas universidades de Stanford e Utah, em parceria com o Centro de Pesquisa Seattle Cancer Care Alliance, mostrou que, quando a enfermidade chega, justamente o momento em que os votos de “na saúde e na doença” são colocados à prova, e os homens precisam assumir o papel de cuidadores, muitos simplesmente abandonam.
Outro fenômeno igualmente grave é a solidão da mulher negra. Preteridas por homens brancos e também por homens negros, que, ao ascenderem financeiramente, muitas vezes escolhem mulheres brancas como símbolo de status social, as mulheres negras carregam uma herança histórica dolorosa. Desde os tempos da escravidão no Brasil, foram vistas sob o olhar que as reduz à função sexual, como se fossem corpos disponíveis, e não pessoas dignas de amor e afeto.
Essa herança racista moldou o imaginário social até hoje: mulheres negras raramente são assumidas como namoradas, nem ocupam o mesmo espaço no “mercado afetivo” que as mulheres brancas. Nem mesmo o amor romântico, o qual criticamos acima, lhes foi plenamente vendido, como se para elas não fosse permitido sonhar com um amor idealizado, de cuidado e reciprocidade. E, mesmo carregando séculos de dores, traumas, exclusões e solidões, não se vê mulheres negras criando movimentos no estilo redpill. Que coisa, não?
Mas para combater a solidão masculina, sempre há uma legião de homens prontos para solucionar o problema de sua classe deprimida. São empresários vendendo soluções que, infelizmente, estão longe de ser prescrição de terapia ou debates para a transformação social. O que se oferece são “namoradas” geradas por inteligência artificial.

Na última The Europe Summit da indústria adulta, realizada em Praga (09/2025), empresários exibiam com orgulho suas “novas gerações” de avatares femininos, em sua maioria brancas, jovens e sorridentes, programadas para tirar a roupa em troca de tokens adquiridos por transferência bancária.
As opções oferecidas revelam muito sobre o olhar dos desenvolvedores para o protótipo feminino ideal. As personalidades disponíveis incluem: “obediente, dócil e feliz em seguir ordens”; “otimista, ingênua e encantada com o mundo”; e “protetora, acolhedora e sempre pronta a confortar”. O usuário pode definir idade, inclusive escolher modelos adolescentes, além de cor da pele, dos olhos e dos cabelos, e tamanho dos seios.
Steve Jones, da porn.ai, um dos criadores dessas IAs, defende seu produto com um argumento, no mínimo, repulsivo: “Você prefere o pornô cheio de abuso e tráfico humano, ou prefere conversar com uma IA?”. Como se o acesso a pornografia fosse um direito inquestionável da sociedade masculina. E, já que o combate ao tráfico de mulheres não figura como prioridade em quase nenhuma agenda política global, surgem esses “puta caras inovadores fora da curva” prontos para se autoproclamar salvadores, não das mulheres, mas de seus próprios impulsos sexuais.
Eu seria a primeira a defender uma invenção dessas se realmente representasse um avanço contra a exploração sexual de mulheres reais. Mas basta pensar um pouco para perceber que o efeito é o oposto: esse tipo de produto apenas cria mais uma vertente de naturalização da objetificação e da pedofilia e reforça a violência contra as mulheres. Reforça, sobretudo, a crença de que o homem tem um “direito natural” ao sexo. O que temos a certeza em relação aos efeitos de tal tecnologia é a de que, quando o homem se cansar de bater punheta para uma IA, será em uma mulher real que ele tentará aplicar as mesmas configurações de um robô submisso.
Homem: o gênero primitivo
Quando estou disposta, gosto de conversar com homens de forma casual ou deixar comentários no Instagram como um pequeno experimento social. Adoro observar em que estágio da evolução eles se encontram, lendo ou ouvindo suas opiniões sobre debates mais críticos e atuais. O resultado, invariavelmente, confirma o que já sei: mesmo os homens com nível social e educacional semelhante ao meu têm dificuldade em acompanhar a evolução que as mulheres alcançaram, intelectual, emocional e social.
O homem é um gênero primitivo. E há uma explicação para isso: o patriarcado.
Ao longo da história, as sociedades humanas foram moldadas por estruturas patriarcais que valorizaram a força física, a dominação e a competição, características associadas à sobrevivência em estágios mais rudimentares da evolução social. Nesse sentido, é possível dizer que o comportamento masculino, em muitas de suas expressões culturais, ainda preserva traços de uma lógica ancestral baseada na conquista, na hierarquia e no controle.

Enquanto isso, o papel sociocultural atribuído às mulheres, mais construído em torno do cuidado, da empatia e da cooperação, evoluiu no sentido de desenvolver competências emocionais e sociais mais sofisticadas, essenciais para a vida em comunidade. Essa diferença não é biológica, mas cultural: ao serem historicamente empurradas para o espaço da escuta, da relação e da mediação, as mulheres se tornaram, por força da exclusão, agentes de refinamento humano.
Os homens, por outro lado, foram condicionados a reprimir emoções, evitar a vulnerabilidade e expressar poder por meio da violência, simbólica ou física. Esse comportamento se aproxima mais dos impulsos primários da sobrevivência do que das formas complexas de convivência que caracterizam uma sociedade verdadeiramente evoluída.
Na psicologia, isso tem um nome: mecanismo de defesa mal-adaptativo. Que é quando uma pessoa continua a usar a estratégia de defesa antiga por hábito, em vez de desenvolver métodos mais adequados à situação atual. Fazendo um paralelo ao tema é, a maioria de nós não tem mais necessidade de viver nos estados de defesa que gerações antigas precisaram, porém, por hábito, ainda vivemos. E, em vez de estimular o desenvolvimento de uma maior consciência emocional, acaba-se por bloqueá-la, limitando qualquer possibilidade de avanço.
Dizer que os homens são um gênero mais primitivo não é uma ofensa, mas uma constatação sobre como a socialização masculina ficou presa a padrões arcaicos. Superar essa primitividade vai exigir que o homem reconheça que evoluir é desaprender certas formas de dominação e abrir espaço para a empatia, o diálogo e a inteligência emocional, qualidades que, ironicamente, as mulheres foram obrigadas a desenvolverem para sobreviver em um mundo que sempre tentou silenciá-las.
Agradecimentos ao feminismo e palavras de esperança ao amor ♥
Essa semana, no mercado, ouvi a caixa conversando com uma colega de trabalho. A colega dizia que terminou um relacionamento há seis meses porque o namorado queria que ela parasse de trabalhar. Ela respondeu: “Eu sempre trabalhei. Deus me livre ficar sem trabalhar e depender de homem.” Um sorriso involuntário abriu-se em mim, e senti um afago no coração por saber que acredito, estudo e me dedico a algo que traz autonomia, liberdade e mais direitos para as pessoas.
Fico imensamente orgulhosa ao ver o quanto o feminismo tem feito por nós. Não precisamos de igreja, nem de fiéis batendo à porta para “vender” a palavra do feminismo (mas, se inventarem, eu topo!). Também não precisamos de pregações manipuladoras, como a de que se você não acreditar, irá para o inferno.
E o melhor: tampouco condenamos as mulheres que se auto-intitulam anti-feministas, porque a coisa mais bonita e poderosa do feminismo é justamente isso: você não precisa se chamar feminista para usufruir de tudo o que o movimento conquistou para você.
O feminismo é um movimento voluntário. Não há financiadores ocultos, nem interesses em acumular poder, riqueza ou influência. Ele nasce da consciência, do despertar de quem começa a enxergar o mundo com olhos mais lúcidos e críticos. E o mais bonito é isso: quem uma vez vê a luz, não escolhe voltar para a escuridão.
Só posso imaginar o quão vazio deve ser viver do outro lado da história, o lado de quem explora, manipula e destrói. Tenho certeza de que a minha missão neste mundo é o oposto disso: tornar este lugar um pouco melhor para quem vem depois de nós, especialmente para as meninas, que merecem crescer em um mundo mais justo e livre.
Para encerrar com uma dose de esperança no amor, faço das palavras de Talian Cordeiro as minhas, pois são de uma lucidez admirável: “A gente sabe que não existe encontro verdadeiro, amor, quando o outro é esmagado. O contato real só acontece quando conseguimos suportar a diferença, ou melhor, quando integramos a diferença em nós mesmos e passamos a nos ver como iguais. Talvez essa seja a virada do nosso tempo, romper com as caixinhas de gênero e restituir a nossa ambiguidade, reconhecer que a vida é uma mistura, porque só quando a gente se aceita como um ser múltiplo é que o amor e a liberdade podem começam a nascer.”
Viva o feminismo!
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