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Parabéns, mãe ausente de 7 anos

Como me livrei da culpa materna para voar mais leve.


No dia do meu aniversário de 7 anos como mãe, eu descascava batatas na Alemanha ao invés de estar enrolando brigadeiros no Brasil. Não por acaso a data cai no mesmo dia do nascimento do meu filho Martin, que celebrava o fim da sua primeira infância com uma festa Pokemón a 9 mil km de distância de mim. E sim por acaso eu estava envolvida nos preparativos de uma festa de 60 anos de um membro da família que me hospedava na Bavária.

Na alternativa cidade do interior da Bahia que eu morava antes de sair para fazer uma viagem pelo mundo, as amigas-mães têm o costume de parabenizar a mãe (e o pai, se presente) antes da criança nas festas infantis, um bonito gesto de consideração que consiste em dar louro aos bois que se sacrificam em troca do cuidado do maior amor do mundo.

Senti falta da irmandande das mães me parabenizando enquanto disfarçadamente eu chorava e fingia prestar atenção em alguém que me ensinava a forma mais eficiente de cortar cenouras. Parei para atender a ligação de Martin que não gosta de falar no telefone, mas que ligava a meu pedido e era tapeado pela minha estratégia em demonstrar interesse por cartas pokemón para conseguir ganhar mais 10 minutos de atenção.

Ao ver ele me mostrando o quanto tinha crescido na noite da virada de 6 para 7 anos, ri e senti o peso da tristeza do meu coração e o chicote da culpa materna querendo voltar.

É verdade que a viagem que estava planejada para 6 meses já dura 10. Ficar mais foi uma escolha egoísta, visando apenas ao meu crescimento pessoal. É permitido às mães pensarem em algo exclusivo para elas? Segundo o imaginário coletivo, seja ele de explicação bíblica ou biológica, por ser mãe eu deveria ter meu filho como a maior alegria e seu cuidado como objetivo mor de vida. Qualquer iniciativa que se sobreponha a essa prioridade não é bem vista no papel da boa mãe.

No dia que senti o clique por viajar, tive uma crise de choro. Senti culpa por meu coração desejar outros desejos que excluíssem meu filho. Já me conhecia o suficiente para saber que quando o coração chama, a vontade se torna irremediável, precisa ser cumprida, mas nem por isso a ideia de ficar longe dele deixava de doer. A partir daí, tratei de aprender a desapegar. Me livrava de roupas, livros, utensílios de cozinha ao mesmo tempo que desconstruia a culpa materna para conseguir ir leve, sem pagar excesso de bagagem.

Essa autoterapia teve base racional nos estudos sobre a história das mulheres, papéis de gênero e dispositivo materno, todos partes da categoria conteúdo libertador. É triste e revoltante ver a quantidade de oportunidades pessoais e profissionais que as mães/esposas perdem porque estão presas nessa emoção construída por gênero, que não tem o mesmo peso para um pai/esposo. Nunca ouvi falar de culpa paterna. Não vejo homens ponderando ou sendo julgados por escolherem viver projetos paralelos longe dos filhos, mas às mulheres sim. Geralmente hiperresponsabilizadas pelo cuidado dos filhos, acabam escolhendo trabalhar em projetos menores que não prejudiquem a que deve ser a maior das ambições femininas que é ser uma boa mãe.

Vide o exemplo da Lélia Salgado, a mulher do Sebastião Salgado, que recentemente deu uma entrevista a Revista Trip falando sobre a invibilização da contribuição ao projeto fotográfico que sempre foi visto apenas como do seu marido. Lélia diz que se sente injustiçada por sempre colocaram a mulher em segundo plano, fazendo com que ela precisasse se posicionar, inclusive para próprio marido, sobre sua autoria nesta obra em conjunto. Enquanto Sebastião viajava o mundo e fotografava as belezas naturais e dos povos e culturas ao seu olhar, Lélia ficava em casa cuidando dos seus filhos e editando os livros, permitindo que ele vivesse sua vida particular ao mesmo tempo em que tinha uma vida doméstica bem-cuidada esperando por ele e ainda tinha alguém para fazer sua carreira decolar. Me pergunto...será que Sebastião sentiu culpa em passar meses longe dos filhos em prol de um projeto pessoal?

A pesquisadora Valeska Zanello pontua bem: que homem estaria disposto a fazer isso por sua esposa? Quem não gostaria de ter uma Lélia na sua vida?

Essa não é uma crítica a quem escolhe a vida doméstica, feminismo está aí fazendo seu trabalho para libertar as mulheres para serem quem elas quiserem, inclusive donas de casa, mas dentro de uma cultura sexista em que a culpa embutida na psiquê das mulheres é a maior aliada do patriarcado, e em que por tantos séculos fomos desencorajadas e deseducadas para vivermos como protagonistas, o que é escolher? Se eu, que tenho acesso a educação e que venho estudando feminismo há tanto tempo, ainda me vejo fazendo um esforço tremendo em admitir a mim mesma que meu filho não é o meu mais importante projeto de vida e que isso não me desqualifica como uma boa mãe, não há muito espaço para outras que não tem os mesmos privilégios. O mito do amor materno ainda precisará de muitos reforços para ser desconstruído.

Não culpo as mulheres - até porque elas já se culpam o suficiente - porque soa injusto aprisionar a mente de seres por séculos e esperar que ao dar algumas migalhas de liberdade elas estejam aptas a viverem plenas sem esse condicionamento que definiram sua identidade a partir de uma inferioridade (fictícia). A psicologia pode explicar e Gerda Lener também. Vemos o quão distante estamos de alcançar liberdade quando ainda é preciso ensinar às mulheres que está tudo bem dizer não quando não se quer fazer algo. Se não conseguimos dizer não, quem dirá tomar uma atitude para um sim que só beneficiará você?

E aqui entra a crítica construtiva que há de ser feita às mulheres. Muito se fala de empoderamento feminino, mas pouco vejo sobre o primeiro passo que uma mulher deve fazer para conquistar seu protagonismo, que é se libertar do prazer egóico que é ser uma querida que agrada a todos. É preciso dar a cara a tapa às críticas alheias e se livrar do narcisismo se você quer alcançar novos voos. Infelizmente, às mulheres não foi ensinado a administrar bem as críticas, porque a caixinha da mulheridade representa justamente o contrário. À mulher é esperado o lugar da passividade, da pacificação, do abrir mão do que é nosso em prol do bem coletivo, em troca de ser vista como uma boa mulher, desejada e amada. Essa é uma prisão do ego e uma armadilha do patriarcado. Se você não aprender a não se importar com que os outros pensam e a não se julgar porque suas escolhas não condizem com que os outros esperam, você sempre estará terceirizando sua auto-estima, esses mesmos terceiros explorarão essa sua fraqueza e você estará impedida de ir aos lugares destinados apenas a você.

Estudar história se faz imprescível para entender que tudo o que nos foi ensinado sobre ser mulher é construção histórica e que podemos construir novas histórias e novos significados para nós e para futuras gerações de mulheres. Diminuir o peso dessa culpa materna para que as próximas mães possam escolher sem culpa, é uma missão que eu estou disposta a pegar para mim. Espero poder contribuir com quem se identifica compartilhando meu caminho, entre reflexões, dramas, perdas e vitórias para alcançar uma nova consciência do que é ser mãe, sem que eu deixe de ser boa.

*** Meu lugar de fala é de uma mulher parda de classe média no Brasil, latina pro resto do mundo, 34 anos, solteira e mãe de um filho de 7 anos com pai presente.